A Associação São Lourenço
No livro Terceiro Setor: gestão e controle social, a cientista social Heloisa Helena apresenta alguns aspectos que definem as ações daquilo que se acostumou nomear como “terceiro setor” (ou TS): A denominação TS é uma nomenclatura geral adotada para distinguir um conjunto de organizações sociais particulares daquelas organizações empresariais lucrativas e de organizações governamentais [2] Helena reconhece a dificuldade em definir com clareza e de forma unívoca as organizações do Terceiro Setor, e por isso apresenta doze diferentes denominações, que subentendem critérios diversos. As características da Associação São Lourenço estão relativamente próximas de duas das definições reunidas pela autora: “setor de caridade” e “setor não lucrativo”: Setor de caridade: originário do termo inglês charity, em que a derivação para o setor caritativo (charitable sector) enfatiza somente a fonte de recursos que provêm de doações caritativas, não considerando outras, como repasses governamentais ou receitas provenientes de atividades e serviços desenvolvidos pelas organizações, para levantamento de recursos. Na Inglaterra, fala-se de caridade (charities) como contraponto moderno e humanista da caridade religiosa. No Brasil, os termos organizações filantrópicas, entidades sociais e obras sociais são utilizados para designar instituições que se dedicam à prestação de serviços sociais, geralmente relacionados a confissões religiosas, cujo ânimo baseia-se na caridade. Setor não lucrativo: proveniente da expressão de língua inglesa (non profit sector) é o termo mais utilizado na sociedade norte-americana, para enfatizar que, originariamente, as organizações não são criadas para distribuir lucros a seus instituidores. A literatura norte-americana utiliza esse termo para diferenciar as organizações que produzem bens e não distribuem lucros das organizações que produzem benefícios para seus próprios membros, em especial as mutualidades e cooperativas. Esse termo não está isento de problemas, pois as organizações são superavitárias e geram receitas superiores às suas despesas. A utilização imprecisa dos conceitos contábil ou econômico de lucro pode gerar distorções na análise dos objetivos das organizações. Se juridicamente a Associação São Lourenço é definida como “setor não lucrativo” (ou ONULUS, Organizzazione Non Lucrativa di Utilità Sociale) – e a utilização do conceito nesse caso não tem nada de impreciso, nem distorcido, já que a comunidade não produz nenhum “bem” (no sentido econômico do termo) ou serviço que dê lucro para ser dividido – a prática da Associação a coloca no “setor de caridade”, tal como entendido no Brasil: está relacionada a uma confissão religiosa, e presta serviço social cujo ânimo é a caridade. São Lourenço: cristianismo e o conceito de caridade Em seu Teorias do Jornalismo, Felipe Pena afirma que o jornalista comunitário deve, entre outras coisas, enxergar com os olhos da comunidade. A concepção cristã de “caridade” – e a realidade representada pela palavra – é esclarecedora para compreendermos o princípio que animou a criação da Comunità Cenacolo e da Associação São Lourenço, e o que anima o trabalho de manutenção, ampliação e ação dessas instituições e das pessoas que as formam e que tornam concreto seu sentido. O filósofo espanhol Julián Marías afirma: O cristianismo consiste na visão do homem como pessoa (...) O cristão se vê a si mesmo como alguém inconfundível, não “algo”, um “quem” distinto de todo “quê”, com nome próprio, criado e amado por Deus, não só e isolado, mas em convivência com os que, por serem filhos do mesmo Pai, são irmãos. Sente-se livre, e, portanto, responsável, capaz de escolha e decisão com uma realidade recebida, da qual não é autor, porém própria. Sabe-se capaz de arrependimento, de voltar-se sobre a própria realidade, aceitá-la, repudiá-la ou corrigi-la. E essa realidade é projetiva, consiste em antecipação do futuro, do que vai fazer, de quem pretende ser, e é amorosa, definida pela afeição por algumas pessoas e o dever de que se estenda às demais. E aspira à sobrevivência, a continuar a viver depois da morte inevitável, não isolada e sim com os demais – reza sua crença na “comunhão dos santos”. Vive por sua condição amorosa a possibilidade da interpenetração de outras pessoas, de ser habitado por algumas. O escritor católico Gustavo Corção explica e exemplifica o que é a “pessoa humana”: (...) a chave, se alguma existe, está na “pessoa humana”; na realidade concretíssima da única e insubstituível pessoa de cada um; ou melhor, está no fato de cada um de nós ser algo mais do que um indivíduo, isto é, uma unidade quantitativa dentro de uma espécie. Quando vemos um homem, vemo-lo geralmente sob o ângulo do relativo, do efêmero, do dimensional, do numérico, e dizemos: ali vai um general, um senador, um operário, um inglês...; e muito raramente nosso olhar penetra o interior de “quem” da pessoa desse absoluto que passa assim escondido no efêmero. É preciso apurar os olhos para entrever a realidade profunda da pessoa humana. Quando dizemos que não há vidas inúteis estamos dizendo, de modo indireto, que há uma imensa e prodigiosa realidade escondida em cada homem (...) comecemos com um exemplo figurado. Vemos passar na rua um regimento. Os soldados são todos iguais. Os uniformes são todos iguais. É verdade que uns soldados são mais gordos, outros mais magros. Há portanto uma pequena variação no corte dos uniformes, mas não pensem que o alfaiate aplica seu metro em cada soldado. Não é assim que se faz. Os uniformes, os sapatos, os capacetes, tudo o que o soldado usa, é feito de acordo com as estatísticas. Cada um é uma unidade quantitativa, de fácil substituição. Na guerra morrem aos milhões. O boletim militar menciona essas perdas, exprimindo-as com cifras. Quando as perdas não passam de alguns milheiros, o boletim declara, com laivos de otimismo, que as perdas são pequenas. Quando as mortes não passam de dezenas, o boletim declara secamente que as perdas são insignificantes. “Nada de novo no oeste”. E tem razão: Lá no seu ponto de vista, tem razão. Para o estado-maior um soldado é um soldado, isto é, uma unidade inteiramente, completamente submetida ao interesse coletivo. Para o estado-maior a pessoa não existe. Quando porém o boletim de guerra é afixado nas paredes de burgo, com os nomes de vítimas, há uma velha camponesa que sente a vista escurecer, e tudo em torno oscilar, vendo um nome, um só nome, um só entre tantos, pular com uma flecha da lista para o coração. Meus senhores, eu não estou apelando para os vossos bons sentimentos. Há circunstância em que vale a pena apelar para as fibras afetivas. Não o contesto. Mas quando se quer falar da realidade do amor, da veracidade do amor, não convém tocar nos nervos das pessoas para que essa suprema realidade não seja confundida com o sentimentalismo que põe ao canto do olho um fácil umedecimento. É preciso, ao contrário, uma grande impassibilidade e uma grande seriedade para falar do amor. Marías e Corção se aproximam do tema caridade abordando-o antropologicamente, ou seja, apresentam como o cristão percebe o ser humano (e isso é o mesmo que dizer como o cristão percebe-se a si mesmo e ao próximo). Embora parte importante do conceito de caridade cristão, o viés antropológico não basta. Há na caridade – tal como o cristão a entende – uma dimensão sobrenatural: A caridade deve ser sobrenatural, desinteressada, universal, ordenada, interior e efetiva (...) Sobrenatural nos seus motivos, na sua origem e na sua prática(...) Favores absolutamente acima das exigências e das forças de nossa natureza; absolutamente gratuitas da parte de Deus, puros efeitos de Seu amor, quer dizer: sobrenaturais. Vista desde a concepção católica, a caridade é um dos frutos do Espírito Santo, que é uma das pessoas da Trindade, e a manifestação do ser divino no ser humano. A prática da caridade produz , na visão católica, diversos efeitos, sendo os principais deles a aproximação dos “irmãos” e o assemelhar-se o ser humano ao próprio Deus: 1 2 3 4 |
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